quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Desbinarizar o pensamento sobre tradução - J. Ferreira Duarte (por Ana Cristina, adaptado)

João Ferreira Duarte procura outras maneiras de pensar a tradução além da oposição binária entre original e tradução, geralmente pressupondo uma hierarquia do original sobre tradução

O discurso de tradução pode libertar-se de uma perspectiva meramente contrastiva a nível linguístico ou textual entre texto de partida e de chegada. Temos outras ferramentas para o conhecimento, outros métodos para meditar a tradução. Alguns objectos de estudo empírico, aliás, desdizem essa dualidade, como sejam:

a) tradução indirecta, ou a tradução feita a partir de uma língua intermédia. É bastante conhecida na cultura portuguesa. Mas assim, surge a pergunta, qual vai ser o texto que funcionará como o de partida? Podemos ponderar a possibilidade de uma tradução ser o original de uma segunda tradução?

b) não-tradução (estuda-se a ausência de tradução e/ou presença exclusiva de textos de língua de chegada): porque certos textos foram impedidos de serem traduzidos num certo espaço-tempo? Por questões políticas, económicas, de normas, e outros, na cultura de chegada.

c) pseudotradução. Textos cujo autor defendia ser uma tradução e a comunidade aceitava. Ou seja, “traduções sem originais”.



A associação do pensamento sobre tradução a determinados quadros conceptuais ou a tipos discursivos complexos que integram transferência linguístico-culturais veio também problematizar e acrescentar novos factores à relação entre partida e chegada em tadução:

A) desconstrucionismo. Jacques Derrida defende que o original e a tradução podem trocar as suas posições devido à dupla relação que as une. Baseia-se no ensaio “A Tarefa do Tradutor” de Walter Benjamin para atribuir à categoria “original” uma relação de dependência irónica com a tradução, definida por traducibilidade. Isto faz com que a tradução defina um original. E em segundo lugar, a tradução provém do original mas não da sua vida já que a tradução vai dar continuação-de-vida às grandes obras literárias. Resumindo tudo isto, a tradução surge como chave da origem do original; caso contrário, este não existiria devido à presença de muitas falhas para a sua continuação.

B) transculturação e hibridização, fenómeno que encontramos na produção quer textual quer cultural de povos colonizados, actualmente considerados sob a lente do pós-colonialismo. Descobrimos alguém do povo colonizado a utilizar a língua e as representações do colonizador com o objectivo de elevar a sua identidade própria, a par com a vontade de preservação de aspectos da sua tradição e a sua defesa pela permanência da ‘diferença’. Assim, nascem textos híbridos, negociações interculturais, mestiçagens linguísticas, representações entre as duas culturas. Nestes textos duplos, o bilinguismo do autor desafia o monolinguismo (a sua língua e a língua dos colonizadores) e temos o confronto entre a cultura dominante, escrita, e o idioma do escritor que se inspira no contador oral. Tudo isto põe em causa a noção de original e tradução, já que a leitura baseia-se na tradução (ex. termos e expressões cujos significados não são acessíveis ao público monolingue). Trata-se de um fenómeno semelhante ao verificado em textos de diáspora, por autores que vivem na experiência de deslocação entre nações, embora neste caso as relações de poder entre língua produtora de cultura e língua ou cultura de ascendência possam ser diversas.

C) inter-ligações entre etnologia e os estudos de tradução como um auxílio para a desbinarização da tradução. Georges Mounin defende que “ o conteúdo semântico de uma língua é a etnografia da comunidade de falantes dessa língua. O tradutor e o etnógrafo são intérpretes de outras culturas que não a sua. A nível textual, a presença da voz do tradutor no texto de chegada e os registos autobiográficos e figurativo na escrita do etnógrafo ganham uma nova legitimidade e legibilidade. A tradução e a etnologia representam outras culturas. Ambas as áreas têm acusações negativas: “pode ser visto como um acto de opressão política”(Michaela Wolf) para a etnografia, “violência etnocêntrica”(Lawrence Venuti) para a tradução. Temos o conceito de tradução cultural onde concluímos que se uma representação escrita de uma cultura for vista como uma tradução, a tradução é a representação de uma cultura. Para terminar, também existem distinções entre estas duas áreas, mas é reflectindo sobre essa distinção que melhor se coloca em causa a centralidade do original na relação com a tradução. O etnógrafo não chega a ter original, mas o tradutor, ou a comunidade que fomenta traduções pode arrogar-se também uma precedência de legitimação sobre os textos que traduz, adaptando-os aos seus valores e normas.

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