Todas as marés revoltas remoinham a areia de margens contrárias
4 de Março de 1970
Hayward, Califórnia
Cara Irmã Lúcia,
O meu pai está morto. Estou destroçada. Um padre aqui da Escola Secundária Bispo Delancy teve o DESCARAMENTO de dar a entender que o meu pai está no inferno por causa da forma como morreu. Aquele padre devia arder no inferno junto da minha mãe, que fugiu para Portland com um advogado & eu nunca mais quero falar com ela, não que ela chore por mim. NÃO VOU viver com a irmã do meu pai, a Tia Palmira, que vive na espelunca de Hayward. Ela TAMBÉM julga que o meu pai está no inferno e RECUSA-SE a deixar-me pronunciar o seu nome! Uma horda dos meus parentes decidiu que aos quinze sou demasiado nova para viver por minha conta (“nestes tempos hippies”) e portanto decidiram mandar-me para Macau! Tive de ir procurar o sítio no mapa!! Uma tia trombeteira qualquer de lá vai hospedar-me & nesta altura, tudo bem, não quero saber. Les Relatives tentaram animar-me, zoando sobre o castelo dela, grandes aventuras, blá blá. Só dizem isto porque todos eles inventaram que não têm lugar para mim. É bom que esse Castelo-Maravilha Chinês tenha uma ponte levadiça que eu possa levantar assim que estiver lá dentro.
É má-criação tua não responderes às minhas cartas. Não acredito que não tenhas ninguém para te abrir o correio, ler as cartas em inglês, & meter as tuas fotos reluzentes num envelope para mandar aos que não TIVERAM A SORTE de testemunhar os seus próprios milagres.
Presumo que se aos doze anos já se está a tagarelar com a Beata Virgo Maria, então a partir daí é sempre a descer. O que eu acho é que tu imaginaste um fogo-de-artifício sobrenatural e o mundo inteiro passou-se e tu já estavas demasiado metida naquilo tudo para voltar atrás. Diz qualquer coisa se vieres a Macau. Atira uma pedra por cima do fosso contra a ponte levadiça e pode ser que eu te oiça.
Desculpe-me. Estou terrivelmente transtornada. Por favor – se é verdade que está junto do céu, peço-lhe pela chama que quase se apaga no fundo da minha alma... por favor diga alguma coisa em benefício do meu pai. Ele merece a claridade. A minha mãe já não. Ela está ocupada com a sua nova vida em Portland. Ela pulverizou o espírito do meu pai e deixou-nos sozinhos. Uma tarde, abri a porta da casa de banho e encontrei-o na banheira mergulhado em água vermelha e rosa, completamente vestido. Sequei-o e pus-lhe o seu fato de algodão preto & a camisa de lavanda & o colete de brocado (padrão de caxemira cor espuma-do-mar esverdeada). Ele tinha o peso da água por isso foi um grande esforço para mim, mas eu não me importei. Aparei-lhe a barba. O cetim enrugado do seu caixão parecia-se com as dobras que todos temos no cérebro. Dei-lhe um beijo de despedida à frente de toda a gente. Quando me tiraram de ao pé dele, eu tinha a tinta do seu rosto no meu e esfreguei-a contra a minha pele e por fim por fim fui escura como ele.
Atenciosamente,
Menina Lara Pereira
19 de Junho de 1979
Hayward, Califórnia
Minha cara Irmã Lúcia,
O nome da minha filha é Blanca. Pesa dois quilos e trinta (nasceu um mês antes do tempo). A sua espinha é tão leve que se parece com bolas de sabão mal pegadas umas às outras. Quando chora por mim, todo o seu rosto se contorce, engelhado como uma flor de cacto.
Jurei que nunca mais a incomodava, mas há algo nas suas memórias que não me sai da cabeça. Foi-lhe dado um vislumbre da beleza celestial de Maria para que pudesse suportar que ela lhe mostrasse o inferno. Disse que guardou as suas visões para si mesma e escolheu o silêncio... pois para quê descrever a agonia eterna? Começo a compreender. O paraíso veio ter comigo em Macau, numa casa no Monte da Penha. Mal consigo falar disto. O David tinha vinte anos. Vivia na casa da minha tia; era o filho da empregada chinesa dela e do marido da minha tia, que fugiu para Xangai quando o bebé nasceu. A empregada morreu ao dar à luz. A minha tia criou o rapaz como seu servente.
E então eu apareci.
Uma vez que estávamos proibidos de nos falar, poderei confessar-lhe o fizemos?
Falávamos por animais.
Ficávamos em cantos diferentes da casa e os nossos dedos moviam-se como aranhas a andar à roda, porque tínhamos acumulado um frenesi de tanto esperar pela penumbra, para que pudéssemos começar os nossos teatros de sombras. Os animais dele cavalgavam os desvios da escuridão e da luz até chegarem a um canto da minha parede.
Minha para sempre, diz o tigre.
Eu vou devorar-te, responde o cão. (Ele ensinou-me a fazer um cão-sombra capaz de abrir os maxilares).
Eu vou ser enorme, diz a lebre, e vou amar-te enormemente. Uma flexão sinistra.
Tira-me a trela, clama o cão. A minha pele está fendida e eu vou abrigar-te e por onde vagueio os teus olhos estarão dentro dos meus.
O peixe endoidece: monta as minhas costas e nunca te irás afogar!
Trago o selo da espera na minha testa por causa do rapaz que me falava por animais; ele não podia esgueirar-se para dentro do meu quarto até à meia-noite.
Lúcia, você foi condenada a uma espera de décadas pela próxima visita de Maria... e ela não a visitou. De outra forma poderia partilhá-lo com alguém, não é?
O David morreu. Tenho de dizer que morreu por mim. Foi baleado e morto enquanto tentava nadar para o continente com um alfinete roubado à minha tia. Eu era para ir ter com ele depois de atravessar a fronteira por terra. Ele teve de ir por mar porque a fronteira entre Macau e a China é estreita e os guardas retiram os objectos de valor a toda a gente. Tínhamos planeado vender o alfinete do outro lado.
Voltei para Hayward & aluguei um quarto do qual mal saí durante três anos & segui dactilografia para sobreviver. E então iniciou-se um novo capítulo: o nome do meu marido é Ray Garcia; é chefe de cozinha. A Blanca é o seu tesouro e o meu. Na cidadezinha que antes se chamava o Jardim do Éden (ha!) graças à abundância dos seus produtos: alcachofras, alperces, tomates, sal. A fábrica de conservas Hunts. Embora hoje em dia a minha terra natal seja andrajosa & combustível & angulosa & pobre de frutos.
Escrevi um romance sobre a minha tia-avó que cresceu na sua zona & valeu-me uma posição de professora a oitenta quilómetros de auto-estrada, na Universidade de Redwood. Vou enviar-lhe uma cópia autografada. Na foto do meu pai, o rosto da Tia Mariana tinha uma racha que ia do olho esquerdo até ao queixo, como o leito de um rio seco, um golpe no qual se podia cair.
Começo a perceber o significado da gripe que vitimou o seu Tio Francisco, no ano a seguir a ter presenciado o milagre. Ele ouviu mas não pôde ver a dádiva do céu. Pressinto-o na periferia do que sou hoje.
A Prima Jacinta recebeu a visão mas não as palavras. Também morreu cedo.
Mas você tem de durar em silêncio depois de conhecer a medida de tudo.
Quanto nas nossas orações é apenas a exigência de que Deus o Pai mostre o Seu rosto de uma vez por todas e nos dê a lista do que queremos. Tal como as crianças queremos que a criação nos seja oferecida na sua forma perfeita e luzidia, e quando isso não acontece dizemos que Deus está morto e a criação não é assunto nosso. Começo a ver que isto é o nosso próprio medo de aprender a amar o mistério do mundo.
Aqui está um fragmento de Português que ainda retenho: sonhos cor-de-rosa. O meu pai disse-me que é assim que se deseja bons sonhos a alguém: invoca-se o tom do céu quando a noite se une ao dia e a união sangra um pouco.
Pink dreams, Irmã Lúcia... tenho de concluir. A minha filha está a acordar.
Sr.ª Lara Pereira
20 de Julho de 1985
Hayward, Califórnia
O artigo da Enquirer que me mandaste fez-me rir a bandeiras despregadas. Eu também estremeço ao lembrar-me da carta que escrevemos, quando as freiras nos mantinham sob o seu pulso de ferro. Santo Deus, não sei o que é mais risível, se a manchete: “Revelado pela Primeira Vez – O Terceiro Segredo de Fátima!” ou se a profecia em si. O apocalipse tornou-se tão invariavelmente banal e efabulatório! É óbvio que “milhões de homens morrerão de hora a hora,” e “fogo e fumo cairão do céu.” Que falta de especificidade. Eu exijo nomes, datas, lugares!
O ponto alto desta prosa infindável é a que se refere aos repórteres italianos que conseguiram este furo. Que o Papa não seja capaz de se conter e tenha mexericado A Grande Mensagem Secreta ao seu amigalhaço Padre Pio é desopilante. Para onde quer que se olhe o que se encontra é um alegre jogo da fama, inclusive entre os Beneficiários da Graça Divina (omissão). (Lembraste de como as freiras nos compeliam a invejar os estigmas do Padre Pio e os seus poderes telepáticos? Eu admito que os últimos parecem formidáveis.)
As configurações de culto que se formam à volta dos milagres – especialmente este (o nosso) – dão-me pele de galinha. Basta virar algumas pedras, e logo aparecem os enxames de fiéis, com o seu chinfrim e o palavreado anticomunista a dizer que Maria ordena que rezemos pela Rússia. Não sou a primeira a sugerir que a Lúcia pode ter entrado naquele terreno da histeria que é preferível não discutir, tu percebes, desejo sexual canalizado para os sítios errados e a rebentar num paraíso tecnicolor garrido. (Eu que o diga. Com a Gina com dois anos & a Blanca já com seis & o Ray a trabalhar à noite enquanto eu ensino durante o dia... bem, tu preenche o espaço preenche tu o espaço em branco & tenta imaginar a amofinação que esse espaço em branco é.) A Lúcia também é acusada de ser uma beata fraudulenta que só queria atenção, mas nesse ponto ela tem a minha solidariedade. Quem é que a pode culpar de ter desejos desmedidos? O que quer que ali se passasse, ela mandou-o cá para fora, forjou uma história, um céu reconfigurado, um evento que a história vai lembrar. Nada mau. Na foto da Enquirer, a pele dela tem um aspecto invulgarmente liso para alguém da sua idade. Pestanas negras como o carvão. Eu admito, Alice, ter-lhe enviado uma ou duas cartas ao longo destes anos – ela nunca me respondeu – mas vejo-a apenas como uma mulher trespassada por algumas horas assombrosas, de estalar toda a vida. Não é o que todos queremos? Mas sem o palavreio religioso.
Sim, publiquei o meu segundo livro. Poesia. Foi ao fundo. Estou cansada de ensinar e sou capaz de pedir uma licença para tomar conta da Gina. A Blanca finge que sou invisível.
É bom falar contigo outra vez. Podíamos fazer mais do que enviar postais de Natal. Manda-me notícias de Seattle & dos miúdos & do teu ex-marido quando quiseres (ha!) o ânimo impulsiona-te.
Afectuosamente,
Lara
P.S. Soubeste que a Maria tirou o curso de enfermagem e foi para a Guatemala? Estas foram as últimas novidades que recebi dela. Tens falado com ela?