terça-feira, 19 de outubro de 2010

Aqui têm tradução de uma colega (Celina). Comparem, comentem, contestem, sugiram


Todas as marés revoltas remoinham a areia de margens contrárias

4 de Março de 1970
Hayward, Califórnia

Cara Irmã Lúcia,

            O meu pai está morto. Estou destroçada. Um padre aqui da Escola Secundária Bispo Delancy teve o DESCARAMENTO de dar a entender que o meu pai está no inferno por causa da forma como morreu. Aquele padre devia arder no inferno junto da minha mãe, que fugiu para Portland com um advogado & eu nunca mais quero falar com ela, não que ela chore por mim. NÃO VOU viver com a irmã do meu pai, a Tia Palmira, que vive na espelunca de Hayward. Ela TAMBÉM julga que o meu pai está no inferno e RECUSA-SE a deixar-me pronunciar o seu nome! Uma horda dos meus parentes decidiu que aos quinze sou demasiado nova para viver por minha conta (“nestes tempos hippies”) e portanto decidiram mandar-me para Macau! Tive de ir procurar o sítio no mapa!! Uma tia trombeteira qualquer de lá vai hospedar-me & nesta altura, tudo bem, não quero saber. Les Relatives tentaram animar-me, zoando sobre o castelo dela, grandes aventuras, blá blá. Só dizem isto porque todos eles inventaram que não têm lugar para mim. É bom que esse Castelo-Maravilha Chinês tenha uma ponte levadiça que eu possa levantar assim que estiver lá dentro.
            É má-criação tua não responderes às minhas cartas. Não acredito que não tenhas ninguém para te abrir o correio, ler as cartas em inglês, & meter as tuas fotos reluzentes num envelope para mandar aos que não TIVERAM A SORTE de testemunhar os seus próprios milagres.
            Presumo que se aos doze anos já se está a tagarelar com a Beata Virgo Maria, então a partir daí é sempre a descer. O que eu acho é que tu imaginaste um fogo-de-artifício sobrenatural e o mundo inteiro passou-se e tu já estavas demasiado metida naquilo tudo para voltar atrás. Diz qualquer coisa se vieres a Macau. Atira uma pedra por cima do fosso contra a ponte levadiça e pode ser que eu te oiça.
            Desculpe-me. Estou terrivelmente transtornada. Por favor – se é verdade que está junto do céu, peço-lhe pela chama que quase se apaga no fundo da minha alma... por favor diga alguma coisa em benefício do meu pai. Ele merece a claridade. A minha mãe já não. Ela está ocupada com a sua nova vida em Portland. Ela pulverizou o espírito do meu pai e deixou-nos sozinhos. Uma tarde, abri a porta da casa de banho e encontrei-o na banheira mergulhado em água vermelha e rosa, completamente vestido. Sequei-o e pus-lhe o seu fato de algodão preto & a camisa de lavanda & o colete de brocado (padrão de caxemira cor espuma-do-mar esverdeada). Ele tinha o peso da água por isso foi um grande esforço para mim, mas eu não me importei. Aparei-lhe a barba. O cetim enrugado do seu caixão parecia-se com as dobras que todos temos no cérebro. Dei-lhe um beijo de despedida à frente de toda a gente. Quando me tiraram de ao pé dele, eu tinha a tinta do seu rosto no meu e esfreguei-a contra a minha pele e por fim por fim fui escura como ele.

Atenciosamente,

Menina Lara Pereira



19 de Junho de 1979
Hayward, Califórnia

Minha cara Irmã Lúcia,
           
            O nome da minha filha é Blanca. Pesa dois quilos e trinta (nasceu um mês antes do tempo). A sua espinha é tão leve que se parece com bolas de sabão mal pegadas umas às outras. Quando chora por mim, todo o seu rosto se contorce, engelhado como uma flor de cacto.
            Jurei que nunca mais a incomodava, mas há algo nas suas memórias que não me sai da cabeça. Foi-lhe dado um vislumbre da beleza celestial de Maria para que pudesse suportar que ela lhe mostrasse o inferno. Disse que guardou as suas visões para si mesma e escolheu o silêncio... pois para quê descrever a agonia eterna? Começo a compreender. O paraíso veio ter comigo em Macau, numa casa no Monte da Penha. Mal consigo falar disto. O David tinha vinte anos. Vivia na casa da minha tia; era o filho da empregada chinesa dela e do marido da minha tia, que fugiu para Xangai quando o bebé nasceu.  A empregada morreu ao dar à luz. A minha tia criou o rapaz como seu servente.
            E então eu apareci.
            Uma vez que estávamos proibidos de nos falar, poderei confessar-lhe o fizemos?
            Falávamos por animais.
            Ficávamos em cantos diferentes da casa e os nossos dedos moviam-se como aranhas a andar à roda, porque tínhamos acumulado um frenesi de tanto esperar pela penumbra, para que pudéssemos começar os nossos teatros de sombras. Os animais dele cavalgavam os desvios da escuridão e da luz até chegarem a um canto da minha parede.
            Minha para sempre, diz o tigre.
            Eu vou devorar-te, responde o cão. (Ele ensinou-me a fazer um cão-sombra capaz de abrir os maxilares).
            Eu vou ser enorme, diz a lebre, e vou amar-te enormemente. Uma flexão sinistra.
            Tira-me a trela, clama o cão. A minha pele está fendida e eu vou abrigar-te e por onde vagueio os teus olhos estarão dentro dos meus.
            O peixe endoidece: monta as minhas costas e nunca te irás afogar!
            Trago o selo da espera na minha testa por causa do rapaz que me falava por animais; ele não podia esgueirar-se para dentro do meu quarto até à meia-noite.
            Lúcia, você foi condenada a uma espera de décadas pela próxima visita de Maria... e ela não a visitou. De outra forma poderia partilhá-lo com alguém, não é?
            O David morreu. Tenho de dizer que morreu por mim. Foi baleado e morto enquanto tentava nadar para o continente com um alfinete roubado à minha tia. Eu era para ir ter com ele depois de atravessar a fronteira por terra. Ele teve de ir por mar porque a fronteira entre Macau e a China é estreita e os guardas retiram os objectos de valor a toda a gente. Tínhamos planeado vender o alfinete do outro lado.
            Voltei para Hayward & aluguei um quarto do qual mal saí durante três anos & segui dactilografia para sobreviver. E então iniciou-se um novo capítulo: o nome do meu marido é Ray Garcia; é chefe de cozinha. A Blanca é o seu tesouro e o meu. Na cidadezinha que antes se chamava o Jardim do Éden (ha!) graças à abundância dos seus produtos: alcachofras, alperces, tomates, sal. A fábrica de conservas Hunts. Embora hoje em dia a minha terra natal seja andrajosa & combustível & angulosa & pobre de frutos.
            Escrevi um romance sobre a minha tia-avó que cresceu na sua zona & valeu-me uma posição de professora a oitenta quilómetros de auto-estrada, na Universidade de Redwood. Vou enviar-lhe uma cópia autografada. Na foto do meu pai, o rosto da Tia Mariana tinha uma racha que ia do olho esquerdo até ao queixo, como o leito de um rio seco, um golpe no qual se podia cair.
            Começo a perceber o significado da gripe que vitimou o seu Tio Francisco, no ano a seguir a ter presenciado o milagre. Ele ouviu mas não pôde ver a dádiva do céu. Pressinto-o na periferia do que sou hoje.
            A Prima Jacinta recebeu a visão mas não as palavras. Também morreu cedo.
            Mas você tem de durar em silêncio depois de conhecer a medida de tudo.
            Quanto nas nossas orações é apenas a exigência de que Deus o Pai mostre o Seu rosto de uma vez por todas e nos dê a lista do que queremos. Tal como as crianças queremos que a criação nos seja oferecida na sua forma perfeita e luzidia, e quando isso não acontece dizemos que Deus está morto e a criação não é assunto nosso. Começo a ver que isto é o nosso próprio medo de aprender a amar o mistério do mundo.
            Aqui está um fragmento de Português que ainda retenho: sonhos cor-de-rosa. O meu pai disse-me que é assim que se deseja bons sonhos a alguém: invoca-se o tom do céu quando a noite se une ao dia e a união sangra um pouco.
            Pink dreams, Irmã Lúcia... tenho de concluir. A minha filha está a acordar.

Sr.ª Lara Pereira

20 de Julho de 1985
Hayward, Califórnia

O artigo da Enquirer que me mandaste fez-me rir a bandeiras despregadas. Eu também estremeço ao lembrar-me da carta que escrevemos, quando as freiras nos mantinham sob o seu pulso de ferro. Santo Deus, não sei o que é mais risível, se a manchete: “Revelado pela Primeira Vez – O Terceiro Segredo de Fátima!” ou se a profecia em si. O apocalipse tornou-se tão invariavelmente banal e efabulatório! É óbvio que “milhões de homens morrerão de hora a hora,” e “fogo e fumo cairão do céu.” Que falta de especificidade. Eu exijo nomes, datas, lugares!
O ponto alto desta prosa infindável é a que se refere aos repórteres italianos que conseguiram este furo. Que o Papa não seja capaz de se conter e tenha mexericado A Grande Mensagem Secreta ao seu amigalhaço Padre Pio é desopilante. Para onde quer que se olhe o que se encontra é um alegre jogo da fama, inclusive entre os Beneficiários da Graça Divina (omissão). (Lembraste de como as freiras nos compeliam a invejar os estigmas do Padre Pio e os seus poderes telepáticos? Eu admito que os últimos parecem formidáveis.)
As configurações de culto que se formam à volta dos milagres – especialmente este (o nosso) – dão-me pele de galinha. Basta virar algumas pedras, e logo aparecem os enxames de fiéis, com o seu chinfrim e o palavreado anticomunista a dizer que Maria ordena que rezemos pela Rússia. Não sou a primeira a sugerir que a Lúcia pode ter entrado naquele terreno da histeria que é preferível não discutir, tu percebes, desejo sexual canalizado para os sítios errados e a rebentar num paraíso tecnicolor garrido. (Eu que o diga. Com a Gina com dois anos & a Blanca já com seis & o Ray a trabalhar à noite enquanto eu ensino durante o dia... bem, tu preenche o espaço preenche tu o espaço em branco & tenta imaginar a amofinação que esse espaço em branco é.) A Lúcia também é acusada de ser uma beata fraudulenta que só queria atenção, mas nesse ponto ela tem a minha solidariedade. Quem é que a pode culpar de ter desejos desmedidos? O que quer que ali se passasse, ela mandou-o cá para fora, forjou uma história, um céu reconfigurado, um evento que a história vai lembrar. Nada mau. Na foto da Enquirer, a pele dela tem um aspecto invulgarmente liso para alguém da sua idade. Pestanas negras como o carvão. Eu admito, Alice, ter-lhe enviado uma ou duas cartas ao longo destes anos – ela nunca me respondeu – mas vejo-a apenas como uma mulher trespassada por algumas horas assombrosas, de estalar toda a vida. Não é o que todos queremos? Mas sem o palavreio religioso.
Sim, publiquei o meu segundo livro. Poesia. Foi ao fundo. Estou cansada de ensinar e sou capaz de pedir uma licença para tomar conta da Gina. A Blanca finge que sou invisível.
É bom falar contigo outra vez. Podíamos fazer mais do que enviar postais de Natal. Manda-me notícias de Seattle & dos miúdos & do teu ex-marido quando quiseres (ha!) o ânimo impulsiona-te.

Afectuosamente,

Lara

P.S. Soubeste que a Maria tirou o curso de enfermagem e foi para a Guatemala? Estas foram as últimas novidades que recebi dela. Tens falado com ela?



8 comentários:

  1. Em linhas gerais gostei muito desta tradução. Acho que está bastante equilibrada e parece-me muito próxima da minha. No entanto, suponho que o texto pode ser melhorado a nível estético. Não creio que existam propriamente regras para o uso do itálico mas sempre aprendi que quando um texto lida com um léxico estrangeiro essas ocorrências devem ser assinaladas pelo itálico. Assim, nomes como "Enquirer", ou "dragonesco" - tal como a professora sugeriu na aula para tradução da palavra "dragonesque" -, suponho que mereçam itálico. Sugiro também que fique em itálico a frase "sonhos cor de rosa" mas por outro motivo. Nas cartas, a autora pretende com esta frase dar a entender que sabe um pouco da língua da destinatária, e, por isso mesmo, esse excerto tem de ser destacado ou arrisca-se a ser camuflado pelo corpo do texto traduzido. Tenho mais umas coisas a dizer mas isto já vai para aqui um grande testamento. asta

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  2. Uma traduçao muito bem elaborada,parabéns à Celina.
    Tenho uma duvida em relaçao à primeira carta, logo no início surge o nome da escola traduzida na língua de chegada. A minha questão é se nao se devia manter o nome da instituição como seu nome na língua de partida(?), visto que é uma referência fora da cultura de chegada.


    JS

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  3. Concordo com muitas opções escolhidas para a tradução, mas algumas das soluções encontradas foram debatidas na aula por isso já não eram bem um problema para mim (mesmo sendo a minha tradução fraca).
    Eu também acho que o nome da escola não deva ser traduzido. na minha tradução eu mantive igual ao original porque não costumo ver estes elementos traduzidos em outros textos ou obras.

    cumprimentos,
    Cláudia Ribeiro

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  4. Acho que esta é uma boa proposta de tradução. Ajudou-me a corrigir alguns dos erros que cometi na minha própria proposta. Gosto especialmente da frase "cavalgavam os desvios da escuridão", acho que captou perfeitamente a ideia do texto de partida.
    A única coisa que tenho a apontar é na frase "Não podia esgueirar-se para dentro do meu quarto até à meia-noite". Acho que o "para dentro" não era necessário. Poderia ter sido traduzido simplesmente por "Não podia esgueirar-se para o meu quarto até à meia-noite".
    Também mantive o nome da escola, achei que deveria manter essa referência cultural.

    Sara

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  5. Também gostei muito da tradução. A Celina arranjou termos muito adequados. Em relação ao "make my skin crawl" também pensei em pôr "dão-me pele de galinha" mas como achei que já me estava a distanciar muito do texto de partida, fiquei-me pelos "arrepios".
    Em relação ao nome da escola concordo com os demais até porque pode soar estranho ao destinatário, visto que não temos nenhum bispo chamado Delancy. Penso que é uma questão cultural.

    Daniela Rodrigues

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  6. Muito obrigada pelas vossas sugestões: parece que é unânime que o nome da escola devia ser mantido! Realmente tive muitas dúvidas nesse ponto. Por uma questão de coerência, talvez também devesse ter mantido "Hunts Cannery" no original, assim como as medidas de peso e de distância, e os títulos que a Lara atribui a si mesma (Miss e Mrs). Tudo isso foi discutido na última aula, e talvez resolva esse tipo de questôes de forma mais refletida no próximo exercício.

    Celina Agostinho

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  7. Segundo me lembro a Celina entregou a sua tradução tardiamente, ou seja depois da aula de esclarecimentos de dúvidas. Não quero com isto questionar as suas capacidades tardutórias, mas o que é facto é que a base de partida não foi a mesma para todos.
    Ao comparar traduções do mesmo texto chego facilmente à conclusão de que traduzir é muito subjectivo. O tradutor não tem nada de invisível, mesmo nada!
    Este exercício serviu para questionar algumas das noções de tradução que me foram insistentemente sugeridas ao longo de 3 semestres.
    Uma delas é que, enquanto tradutores, devíamos manter o registo do discurso do TP no TC. Nesta tradução encontramos léxico mais cuidado para traduzir linguagem claramente coloquial.

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  8. P.S Onde se lê "tardutórias" deve ler-se "tradutórias".

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