domingo, 31 de outubro de 2010

A Voz do Tradutor na Narrativa Traduzida (resumo do Fábio do texto de Theo Hermans)

A voz do tradutor é um meio para um fim. Como receptores, confiamos que o que o tradutor nos relata é, na íntegra, o que foi dito pelo autor. Pretende-se, então, que o tradutor assuma uma posição transparente entre o autor e o público, de modo a evitar ruído ou adulteração da mensagem pela sua presença. Assim, quando lemos a tradução de uma obra de um autor estrangeiro, acreditamos que estamos a ler a voz do autor e não a do tradutor. Por isso dizemos que lemos Dostoiévski apesar de este não ter escrito na nossa língua.

    Porém, Theo Hermans defende que na tradução narrativa não é possível apagar totalmente a presença discursiva do tradutor. Esta segunda voz, que surge da intervenção do tradutor, pode manifestar-se geralmente em três ocasiões: 1ª – quando existe o risco de o texto não ser compreendido pelo leitor implicado; 2ª – quando há manifestações de auto-reflexão ou auto-referenciação socorrendo-se do próprio meio comunicacional; 3ª- nos casos de ocorrência de multiplicidade de factores contextuais.
    No que diz respeito à primeira situação, o autor lembra que uma tradução implica uma mudança de leitor. O público alvo pode mudar geograficamente, temporalmente, socialmente, entre outras situações. E, assim, por se encontrar num contexto pragmático diferente,  leva a que o tradutor se veja obrigado, por vezes, a ter de adequar a sua tradução às necessidades deste público-alvo. Pode afirmar-se, portanto, que um texto traduzido tem na sua génese dois públicos-alvo sobrepostos em que o novo prevalece sobre o antigo. Por exemplo, na tradução de Vasco Graça Moura da Divina Comédia de Dante Alighieri, o texto traduzido vê-se acompanhado por diversas notas que explicam o significado de certos elementos que acompanham a obra. A simbologia dos seres mitológicos pode requerer notas explicativas, bem como o enquadramento de figuras e lugares citados, que existem ou existiram na realidade e que, caso se não expliquem, perde-se parte da compreensão da obra. 
    Quanto à segunda situação, esta prende-se com questões linguísticas. O texto de partida socorre-se de todo o potencial que uma língua tem para oferecer; e as línguas, claro,  não são iguais umas às outras. Assim surgem problemas de impossibilidades de tradução, como quando no texto original ocorrem jogos de palavras, polissemia, e mecanismos semelhantes. Exemplo disto são as anedotas, trocadilhos, ditados, etc. Nestas situações, a linguagem pode entrar em colapso sobre si própria, e o tradutor terá de optar por uma saída: ou recria o texto de forma a tentar preservar o sentido - e assim mantém a sua invisibilidade -, ou vê-se obrigado a recorrer a notas metalinguisticas ou a comentários para explicar a impossibilidade de tradução – mas acabando assim por anular a sua invisibilidade. O autor dá-nos ainda um exemplo curioso da tradução da obra Discours de la Méthode de Descartes. No último capítulo desta obra, Descartes afirma que o seu livro ‘está escrito em francês e não em latim’, frase que não poderia ocorrer na tradução desta obra para latim, porque resultaria numa contradição ou incongruência: o tradutor poderiaoptar por suprimir esta passagem de modo a evitar o problema.
    Por fim, a terceira situação diz respeito à multiplicidade de factores que podem ocorrer num texto para os quais se pode tornar complicado encontrar soluções ideais. Para explicar a quantidade de factores que podem pesar sobre uma tradução, o dá o exemplo da obra holandesa Havelaar. Nesta existe uma personagem, de que até certo ponto não se sabe o verdadeiro nome, o que se sabe é apenas as suas iniciais, e com essas mesmas letras, um outro personagem, que está a tentar descobrir o nome da primeira, defende que atribuindo uma palavra diferente às iniciais estas formam um ditado popular holandês – uma tarefa complicada para um tradutor resolver -. Mas esta situação complica-se mais para o tradutor ao aperceber-se de que esta obra não é uma história ficcional, mas uma autobiografia do seu autor, e que os personagens que nela participam são personagens reais, o que imprime um cunho histórico à obra e limita muito a liberdade do tradutor para resolver os problemas que vão surgindo.   
Theo Hermans defende nesta obra que a voz narrativa do tradutor é por vezes impossível de esconder. E, se por um lado, o tradutor consegue por vezes produzir um texto “sem corpos estranhos”. por outro lado, por vezes é necessário que esse corpo estranho, essa voz, se manifeste para que o texto seja inteiramente – ou na maior medida possível – apreendido. E se para isso o tradutor tiver de rasgar a superfície textual manifestando-se através destas - e de outras – situações, assim terá de ser. Já que uma tradução, por mais que tente ser uma cópia exacta, vai ser sempre diferente do texto de partida.
   

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