quinta-feira, 12 de março de 2015

Poema-Ensaio a João Barrento


Pode um tradutor ser poeta?

(poema-ensaio para João Barrento)

There must be no distance
between the poet and his word.

Bakhtine, que aliás parece lê-se
mal em russo, atira ao poeta
o rosto linguístico absoluto
contra flagrante evidência, e. g.,
o empréstimo cortês na poesia
antiga, toda a lírica de récita
e de canto. O grande dialogista
diga-se gostava era do romance
e seus rumores, cria a poesia
pouco sociável, senão egoísta,
olvidável, everything that enters...
must immerse itself in Lethe, and forget
tudo o que no poema entra mergulha
e a vida toda antes esquece, lembra
só a si... language may remember
only its life in poetic contexts.

Há um tipo de poeta decerto
apostado em que a poesia invente
um mundo que o real não desmente
literal como ninguém. É Herberto,
exemplo maior da palavra-erecta-
-ardência. Não pode o tradutor ser
Herberto por isso é que Herberto
não traduz
muda
Herberto só devém.



Tradutores se poetas são outra
estirpe mais rasteira que prospera
em língua alheia no dizer de outrem
e tem por regra mais que um senhor.
Vivemos de não sermos singulares
mas servos dedicados afinal,
de ouvidos colados às paredes
de falares, requintado plural
de glossa, invisíveis vozes amos
nossos; nós instrumentos díssonos
fragmentos fáceis –  nem
vasos, vácuos
de unicidade
intermitentes veículos
ventríloquos
de breve
validade.

Margarida Vale de Gato in Homenagem a João Barrento. Húmus, 2014.

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